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Memória, emoções, arquétipos e o inconsciente

Segundo Edgar Morin, pensador contemporâneo e filósofo da complexidade os átomos surgidos nos primeiros segundos do Universo têm relação com cada um de nós”, indicando que tudo está interligado e é interdependente no Cosmos, de modo que passado, presente e futuro coexistem num aqui-agora   ou continuum do qual somos parte integrante enquanto agentes cocriadores do nosso próprio destino.

Então, quando falamos em momento presente, em viver o “aqui-e-o-agora”, isso não significa negligenciar o passado ou não fazer planos para o futuro, como alguns interpretam confusamente numa visão, às vezes, estilo nova era,  outras vezes, meio fisicalista limitada tridimensional e temporalmente. Pois, o presente é o encontro do passado com o futuro. Ou, como dizia Leon Tolstoi: “A memória aniquila o tempo: conduz à unidade aquilo que parece ter acontecido em separado”.

É preciso olhar multidimensionalmente sobre isso, pois há aspectos sutis do nosso ser que não são localizados fisicamente, como a nossa mente, as nossas emoções, nossos sentimentos, nosso espírito e suas interconexões. Ao passo que se somos únicos, também somos múltiplos, interligados numa jornada de circularidade e coemergência cujo significado, segundo Edgar Morin (1997), o termo latino complexus nos  revela: aquilo que é tecido junto!

A parte sutil do nosso ser, a “presença”, a experiência consciente, pode até ser detectada cientificamente em suas correlações físicas ou de corporalidade, mas não pode ser explicada desse modo em termos causais . Tudo o que há são apenas correlações e para além disso, a ciência, ao menos em seus moldes tradicionais, nada pode, a não ser falaciosamente,  incorrendo em reducionismos  grosseiros que estão no cerne da mentalidade materialista e progressista que está levando a humanidade e o seu ecossistema planetário ao colapso.

Por isso, precisamos buscar modos mais amplos de ciência e uma profunda reforma em nosso pensamento e em nossos métodos, assim como propõe a teoria da complexidade de Edgar Morin, nos sugerindo uma revisão crítica constante em nosso pensar, sentir e fazer. Podemos sempre no agora retornar ao começo como numa espiral que amplia o nosso autoconhecimento e que a cada volta nos permite uma autotranscendência maior. Desse modo, podemos nos tornar cada vez mais capazes de estabelecer conexões mais significativas uns com os outros, afetando o meio e sendo afetados, cada vez mais sensíveis e cônscios de nós mesmos, num processo chamado por Morin de “auto-eco-organização”:

“(…) Se parto do sistema auto-eco-organizador e remoto, de complexidade em complexidade, chego finalmente a um sujeito reflexivo que não é outro senão eu próprio que tento pensar a relação sujeito-objeto. E inversamente se parto deste sujeito reflexivo para encontrar o seu fundamento ou pelo menos a sua origem, encontro a minha sociedade, a história desta sociedade na evolução da humanidade, do homem auto-eco-organizador” (Morin, 1990, p.64).

Curiosamente, o escritor português José Saramago, ganhador do Nobel, expressou essa mesma idéia, só que da seguinte maneira:

“A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o visitante sentou na areia da praia e disse: ‘Não há mais o que ver’, saiba que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caia, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.”  (José Saramago)

Então, esse recomeçar a viagem (Saramago), essa auto-eco-organização (Morin) pode ser feita através de muitos métodos, mas não se negarmos a nossa subjetividade, as nossas memórias, os nossos condicionamentos e a nossa história, tanto do ponto de vista individual, quanto coletivo.

E é aqui que a memória entra em cena num encontro com o cosmos, a natureza,  a história, a cultura e a sociedade, bem como, com os nossos modos de vida, ou seja, com o nosso próprio comportamento. Pois, num certo sentido podemos afirmar que comportamento é memória manifesta. O termo memória tem sua origem etimológica no latim e significa a faculdade de se reter e readquirir idéias, imagens, expressões e conhecimentos adquiridos anteriormente, reportando-se a lembranças e reminiscências. De modo mais simples e geral, a memória pode ser entendida como a capacidade que temos de adquirir, armazenar e recuperar informações disponíveis. Memórias podem conter imagens, crenças, emoções, sensações, sentimentos, instintos, hábitos. E comportamento é um conjunto mnêmico de reações ou atitudes vinculados a todos esses aspectos em interação recíproca com estímulos do meio.

Em sua abordagem C.G Jung viria a chamar os nossos padrões comportamentais repetitivos ou pacotes de memórias tipológicas, de arquétipos. O subconsciente seria constituído por uma série de padrões de comportamento arquetípicos ou subpersonalidades que podem remontar ao passado, mas que estão presentes em nossa memória profunda e que não obedecem a mesma lógica espaço-temporal concreta da razão. Assim, vivemos de modo complexo as emoções de nossas subpersonalidades, manifestamos seus traços de caráter e limitações, vivemos seus temores e angústias, pensamos seus pensamentos e perpetuamos suas tendências e idiossincrasias na maior parte do tempo sem sequer saber que estamos fazendo.

Essa é uma visão parecida a do monge zen-budista e sábio vietnamita Thich Nhat Hanh sobre a influência do passado sobre nós: “(…) a energia que nos pressiona para fazer o que nós não queremos fazer, dizer o que não queremos dizer, é chamada “energia de hábito”, aquela energia de hábitos negativos em nós. Vasana é a palavra em sânscrito. É muito importante que reconheçamos tal energia em nós. Esta energia foi transmitida a nós por muitas gerações de antepassados, e nós continuamos cultivando-a. É muito poderosa. Nós somos inteligentes o bastante para saber que se fazemos isto ou dizemos aquilo, nós causaremos dano em nossos relacionamentos. Todavia quando chega o momento, quando nos achamos naquela situação, nós dizemos ou fazemos o que não devíamos, muito embora saibamos que será destrutivo agir assim. Por que? Porque isto é mais forte que nós, afirmamos. Está nos pressionando todo o tempo. Por isso a prática direciona-se a liberar-nos daquele tipo de energia de hábito.”

Como vivemos uma cultura cujo paradigma cientifico ignora o sujeito em nome de uma falsa neutralidade, negligenciado e evitando a questão subjetiva e dando margem a falta de reflexão sobre o nosso próprio comportamento, temos sido condicionados a negar, subavaliar e racionalizar demais a função das emoções e dos sentimentos em nossas vidas, vivendo um modelo de educação de hemisfério esquerdo cerebral, lógico, racional, que nos leva a construir mecanismos de defesas tão repressores quanto ineficientes para conter as emoções negativas, as carências afetivas, os desamores e os desarranjos psíquicos que carregamos provenientes de memórias inconscientes ou arquetípicas, geralmente hostis ao ego. Por isso, soterradas no inconsciente (ou na sombra) e que se expressam através de nós como padrões psicológicos negativos ou estereotipados.

A base de que partimos é negativa, pois sempre partimos do que ignoramos, de alguma carência, de algum nível de inconsciência, portanto, toda a falta de amor ou desamor é no fundo também uma memória, um condicionamento e é também apenas um estado ou estágio humano de desenvolvimento. “(…) estamos ocupados demais com as tomadas negativas de nós mesmos porque o ponto de partida de nossa personalidade está em uma base negativa. Quando nós desamarramos este modelo e aquele modelo e aquele outro modelo, então aqui estamos, aqui estamos. Aqui estamos realmente amando. Aqui estamos amando.” (Ram Dass)

A questão passa a ser então, rompermos com esses condicionamentos pretéritos e resgatarmos a “presença” que surge quando abrimos espaço para nós mesmos em nossa consciência, quando expandimos nossa mente, quando abrimos espaço ao amor. Presença significa nos conectarmos cada vez mais com a nossa fonte mais profunda, a nossa essência.

Técnicas de regressão são no fundo métodos de PRESENCIAMENTO, pois nossas emoções podem ficar retidas num passado inconsciente quando reprimidas, e liberadas quando rememoradas terapeuticamente, trazendo-nos ao presente existencial: “Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória.”, diria José Saramago. Ou seja, o tempo psicológico é diferente do tempo físico, ao passo que simultaneamente sejam interagentes. E a própria noção de inconsciente remete a uma atemporalidade ou espaço-tempo contínuo.

Assim destaco o trabalho em psicoterapia direcionado a recuperação de memórias reprimidas no inconsciente que pode levar muitos nomes como regressão, revivência, relembrança, recordação, anamnese, metanóia, etc, mas que de modo geral visa cumprir um mesmo objetivo, que é o de aumentar a nossa capacidade de autoconsciência através do desbloqueio e ressignificação de memórias profundas que nos prendem aos padrões condicionados limitantes e negativos.

A mudança no sentir é um dos principais fatores a ser verificado, independente da crença ou hipóteses interpretativas do conteúdo da regressão. Ao assumir um diferente personagem numa regressão a pessoa pode olhar o seu próprio problema em perspectiva, tornando-se sujeito e não objeto de suas vicissitudes, podendo atuar sobre as emoções e sentimentos negativos que carrega e reestruturar seus diálogos internos limitadores, abrindo-se então para exercitar e vivenciar uma verdadeira mudança em seu comportamento.

O psicólogo e neurocientista Júlio Peres é clínico e pesquisador dessa área em particular e através de exames com neuroimagem tem atestado os benefícios que a recuperação de memórias traumáticas pode trazer as pessoas, conforme observa em seu trabalho: “O processo natural de misturar e falsificar memórias não pode ser negado ou evitado pelos psicoterapeutas. Ao contrário, este deve ser usado de maneira eficaz para promover a saúde mental”.

Minha própria visão e experiência nesse campo apontam para o fato de que as lembranças e revivências de traumas passados têm virtudes curativas e terapêuticas que possibilitam o desativar das experiências emocionais bloqueadas no inconsciente, bem como, o reformular de mandatos negativos e limitantes, além da aquisição de maior sabedoria consciente pela possibilidade de aprendizado sobre leis sutis e causais que regem as nossas vidas em termos psíquicos e afetam nossas escolhas, gerando consequências.

Como a evidência clínica tem demonstrado, as revivências transpessoais nos tornam mais capazes de nos liberarmos de nossos condicionamentos antigos e abrem espaço a “presença” que nos conecta ao aqui-agora e a um contato cada vez maior com a nossa “essência” e a energia transformadora do amor; numa jornada interior reveladora de que em algo ainda somos, os eternos viajantes.

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